- O mundo é habitado por todos os tipos de criaturas.
- Certas criaturas são estranhas, outras não.
- Certas criaturas estranhas são reais, outras não.
- Para ver o mundo como ele realmente é, deixe de lado palavras como "estranho, real ou imaginário".
Do diário de Thomaz, na primeira página
Segredo sonoro
Thomaz estava à beira de uma síndrome de pânico. Tudo parecia completamente fora do controle. Como assim? Por quê? Ele respirava lentamente, sua mente tentava encontrar o momento exato em que as coisas tinham dado errado.
Antes de sair de casa, ele havia colocado cuidadosamente todos os seus papéis em malas separadas. Ele sabia que alguma coisa estava fora da ordem natural no momento em que acordou e percebeu que um belo sonho se apagara de sua mente. Não era um bom sinal perder os bons sons.
Ele olhou o espaço ao redor. Thomaz não gostava de ter seu espaço estuchado de sofás e mesas. Os convidados eram raros e sempre diziam que ele era um minimalista, talvez para não lhe dizerem que o achavam um cara incomum. Livros e cadernos cuidadosamente empilhados espalhavam-se por toda parte, parecendo pequenos edifícios coloridos. Mesas baixas, de madeira, eram também cobertas por livros, exceto uma, que Thomaz usava para comer. Quase nenhuma cadeira, já que ele gostava de ler, brincar e comer de pernas cruzadas no chão lustrado, coberto por tapetes asiáticos. Numerosos instrumentos musicais viviam recostados nas paredes brancas, como se fossem árvores de uma bela floresta musical.
Thomaz mantinha suas malas perto da porta como se estivesse sempre prestes a viajar. A mala marrom, a maior delas, mantinha seus diários, a mala preta os documentos, a vermelha era para todas as agendas, as velhas e as novas; a mala verde cheia de listas de tantas coisas por vir e finalmente, a mala cinza, repleta de quadros, restos de ideias, sonhos confusos e visionários. A mala menor, na verdade uma mala de mão, guardava esboços, fotos da sua infância, e também suas fotos de céus, montanhas, , luas, lagos, estrelas e do mar...
Thomaz tocou lentamente todas elas e, de alguma forma, sentiu-se aliviado. Tudo parecia estar sob controle. Olhou de relance pro celular. Tinha muito tempo para tomar uma xícara de café. Thomaz olhou mais uma vez para suas malas antes de ir para a cozinha. As malas estavam todas quietas. Nenhuma criatura tentava fugir de suas páginas. Ele respirou fundo. Desde que era só um garotinho já tinha visto e ouvido seres musicais. Primeiro sentiu a presença deles como som e sombras, enquanto ainda era um bebê no berço. Sombras sonoras comoventes, tão amigáveis e belas que ele podia passar horas apenas vendo-as dançando descalças a sua volta. Levaria anos para ele perceber que outras crianças, muito menos adultos, não conseguissem ver ou ouvir seus doces amigos melódicos.
– Meu filho ama seus amigos invisíveis – dizia sua mãe a seus professores que o tinham como um cara doidão.
– Muitas crianças têm amigos invisíveis, isso é bem comum – sua mãe insistia.
Era inútil. Os professores nunca o trataram como às outras crianças. Pelo menos era assim que ele se sentia.
O celular tocou; era uma mensagem de voz de sua mãe. Ele sorriu. Ela parecia adivinhar seus pensamentos, às vezes. Thomaz deixou suas memórias de lado e olhou para fora da janela. Estava um dia tão lindo. Ele vestiu o casaco e o chapéu, pretos, cobrindo seus longos cabelos negros. Olhou de relance para o espelho e sorriu. Eles estavam sempre com ele. Criaturas musicais. As secretas criaturas de som. Num relance, ele viu vários seres sorrindo de volta para ele. Eles dançavam dentro e fora do espelho tão rápido, que ele dificilmente conseguia seguir seus pequenos e precisos movimentos. Era um dia de viradas. Ele assim sentia. Uma vida inteira passada em companhia da música certamente havia ampliado sua cabeça e seu coração. No entanto, ele não tinha ainda desenvolvido inteiramente seus próprios olhos musicais. Ele conseguia sentir muitas coisas, até mesmo o futuro, mas não prevê-lo. Os olhos devem ver, não ouvir. O que pode ocorrer quando os olhos ouvem?
Thomaz levou um tempo para decidir qual violão ele tocaria naquele domingo. Cada instrumento guardava seus próprios segredos. Além disso, ele não tinha certeza se deveria tocar, escrever ou desenhar. Tudo o que ele queria fazer era sentar-se em um banco perto da fonte e que o sol de seus raios acariciasse seu rosto. E ver suas criaturas musicais se lavando em águas límpidas. Sentir o barato de ser ser humano, desfrutar do poder de ser ele mesmo.
No entanto, olhou pela janela e viu o ponto de táxi lá fora. Ele olhou pro lado e percebeu que havia deixado sua viola espanhola encostada na parede. Já é. Ela seria sua companheira aquele dia. Thomaz pegou a grande case preta, depois pôs seu violão nas costas e adentrou o táxi.
Hora do almoço. Thomaz adorava observar as pessoas sentadas em refeições familiares, conversando, fazendo uma pausa do trabalho para compartilhar as notícias diárias. Qual seria a sensação de ter uma vida pacata e previsível? Thomaz tinha certeza de que nunca seria capaz de descobrir. De certa forma, ele ansiava ser como qualquer outra pessoa, vivendo apenas 24 horas por dia. Ao mesmo tempo, sua curiosidade por novos lugares e terras o mantinha incansavelmente na estrada. Tinha quase certeza que sua vida era trilhar o caminho dos músicos nômades. Cada vez que atravessava fronteiras, sentia como se quisesse entrar em uma terra atemporal. Um lugar pacífico, sem fronteiras, sem começos, sem meios, sem fins. A vida como ela é.